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26.º AngraJazz

(Paulo Barbosa)

Orquestra AngraJazz
A abrir a série de seis concertos do festival no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, a Orquestra AngraJazz, dirigida pelo maestro Pedro Moreira, centrou a sua apresentação deste ano na passagem de Frank Sinatra pela Terceira em 1945, tendo para o efeito convidado o jovem vocalista e baterista João Ribeiro. Se o mote se arriscava, numa primeira impressão, a parecer um quanto pretensioso, a qualidade da música que a orquestra nos ofereceu depressa se impôs e justificou o argumento em que pretendeu assentar.
A orquestra apresentou-se mais coesa e swingante do que nunca e a escolha do cantor revelou-se mais do que ideal. Sem que jamais tivesse resvalado para qualquer tipo de imitação aberta de Sinatra, Ribeiro pode para esta ocasião ter-se inspirado, como de esperar seria, no célebre cantor, mas, acima de tudo, Ribeiro cantou – e bem – como Ribeiro canta, fazendo o melhor uso do belíssimo timbre com que foi abençoado e da admirável destreza rítmica que sabe colocar em cada frase – o seu instrumento principal é, afinal, a bateria, o que em muito contribuirá para dele fazer, nos dias de hoje, um caso raro e exemplar de um cantor que swinga. Ribeiro deu-nos igualmente uma bela ilustração do swing que tem dentro de si quando em dois temas – “My Funny Valentine” (que também cantou, e novamente muito bem) e “Cute” – se sentou à frente de uma tarola, que “acariciou” com as suas vassouras com uma mestria que dele faz um dos melhores representantes dessa arte em Portugal.
Com tanto enfoque nos dotes de João Ribeiro, os solos acabaram por não ser muitos, mas os que aconteceram valeram a pena, com destaque para magnífica mestria do trompetista convidado Henrique Pinto – um dos mais interessantes jovens músicos do panorama do jazz nacional –, mas também para os residentes da orquestra Paulo Borges (igualmente em trompete) e Rui Melo (em sax tenor). E, por tudo isto, este terá sido, globalmente, um dos melhores concertos de sempre da Orquestra AngraJazz!

Stefano Di Battista
pós um intervalo forçosamente mais longo do que é habitual, por motivos que se prenderam com atrasos no aeroporto de Ponta Delgada, subiu a palco o quinteto do saxofonista Stefano Di Battista, com o trompetista Matteo Cutello, o pianista Andrea Rea, o contrabaixista Daniele Sorrentino e o baterista Luigi Del Prete. É provável que os contratempos com as ligações aéreas tenham aumentado a vontade destes músicos de tocar, pois arrancaram, como em gíria jazzística se costuma dizer, “a partir a loiça toda”, com um nível de energia bem elevado, que conseguiram manter durante quase toda a sua atuação.
Tendo como mote a música para cinema italiano, o quinteto revelou-se sempre em grande forma, com particular destaque para o jovem trompetista Matteo Cutello – com um som maravilhoso e uma afinação mais do que perfeita –, mas também para o constante requinte e bom gosto do contrabaixista, bem como para o próprio líder, particularmente pelo belíssimo som que nos oferece no saxofone soprano.
Mais próximo do final, o concerto correu o risco de resvalar para um excessivo tom de paródia – “o Bom, o Mau e o Vilão”, de Ennio Morricone, não será dos temas mais fáceis de jazzificar e músicos a descer de palco para tocar do meio da plateia raramente faz o deleite dos mais criteriosos apreciadores de jazz –, mas foi tanto o bom jazz que este quinteto nos ofereceu que o balanço foi francamente muito positivo. E assim começou e acabou em alta a primeira noite do 26º AngraJazz.

Samuel Lercher Trio
Com uma secção rítmica de luxo – o contrabaixista André Rosinha e o baterista Bruno Pedroso –, ao Samuel Lercher Trio couberam as honras de abertura da segunda noite do festival. Lercher exibe um som muito belo e puro, quase cristalino, do seu piano, mas, não obstante toda a mestria rítmica de Pedroso e Rosinha e a evidente empatia que reina entre os músicos, o trio tende a permanecer rítmica, harmónica e mesmo melodicamente cativo a uma vertente mais próxima da música clássica e, dentro do jazz, a uma estética semeada pelo EST (Esbjorn Svensson Trio) e tão ampla e excessivamente clonada Europa fora ao longo das duas últimas décadas. A música é inegavelmente bonita e agradável, mas, só aqui ou ali, em particular em vários excelentes solos de contrabaixo e de bateria, conseguiu despertar o tipo de entusiasmo e excitação que se espera desta música a que se dá o nome de jazz.

Uma nota especial e muito justa para a magnífica qualidade de som que nos proporcionou o técnico João Rita. Se neste último concerto, essa excelência se tornara particularmente evidente, a verdade é que o festival tem vindo a ser abençoado pelo excelente desempenho de um técnico que, ano após ano, e cada vez mais, tem vindo a oferecer som perfeito que os músicos, o festival e o público merecem.

Ekep Nkwelle
Arrancando e impressionando muito bem com “Never Will I Marry”, tema de Frank Loesser tornado clássico na versão de Nancy Wilson com Cannonball Adderley e recentemente refeito por Cécile McLorin Salvant, foi desde logo percetível que o sucesso da atuação de Ekep Nkwelle dependeria apenas da qualidade do repertório que a jovem cantora decidisse apresentar-nos. Nesse sentido, “Amazon Farewell” (de Djavan, felizmente cantado em inglês) e “Caged Bird”, de Abbey Lincoln, terão representado as únicas peças menos memoráveis a assinalar num concerto de resto brilhante. Mas mesmo quando a canção em si possa não ser a mais adequada aos substanciais atributos de Nkwelle, a cantora sabe bem o que com eles fazer e para onde os levar, conseguindo, mesmo naquelas escolhas menos felizes, atingir e despertar picos de emoção a um nível que poucas vozes do jazz conseguem hoje alcançar.
Um verdadeiro portento, Ekep Nekwelle tem tudo o que mais se deseja que uma boa cantora de jazz tenha: uma potência vocal impressionante, um timbre belíssimo, uma quase total ausência de vibrato, dispensado pela extraordinária qualidade da sua afinação, uma swingante maleabilidade rítmica aplicada a cada frase, a cada palavra, a cada sílaba, a cada som. Talvez mais ainda do que no tema de abertura do concerto, o melhor da qualidade rítmica do seu fraseado aflorou em “Good Morning Heartache”, numa versão que me chegaria para reconhecer a Nkwelle, ao lado de Salvant e Samara Joy, um lugar no pódio do canto jazz de hoje.
Não poderia dispensar a justa referência a uma secção rítmica que, ainda que constituída por músicos muito jovens – Sequoia Snyder no piano, Liany Mateo no contrabaixo e Anwar Marshall na bateria –, simultaneamente agraciava a música e apoiava a cantora, motivava e estimulava uma escalada conjunta até picos cada vez mais altos, sem deixar de, a todo o momento, privilegiar uma intensa e atenta interação entre os vários membros do grupo, que desta forma foi sempre muito mais do que um mero trio de acompanhamento.
A sensação de descoberta de um nova estrela no jazz cantado é um privilégio e uma honra pela qual devemos todos estar muito gratos à organização do AngraJazz.

David Murray
A abrir a última noite do festival esteve um dos mais profícuos artistas de jazz (e não só) das últimas décadas; com mais de 200 discos editados em seu nome, fora mais de 20 em nome do World Saxophone Quartet, de que é membro fundador, David Murray será nesta matéria ultrapassado talvez apenas por John Zorn (cujas produções vão, muitas delas, muito para além do jazz) estando à frente até de Sun Ra ou Anthony Braxton (embora este bata recordes em termos de box sets). Tínhamos em palco um dos monstros sagrados do saxofone tenor e do clarinete baixo, um músico que, desde meados da década de setenta, contribuiu de forma significativa para uma revitalização de ambos os instrumentos e que encarna na perfeição toda a intensidade, liberdade e ecletismo do jazz. O som do sax de Murray é enorme, ora muito melódico, ora só som, percorrendo a história do instrumento desde Coleman Hawkins ou Ben Webster, passando por Paul Gonsalves ou Sonny Rollins, até Albert Ayler.
Murray mostrou no palco do AngraJazz um pouco do muito que o seu jazz pode ser, a maior parte do tempo muito bem, suportado por uma excelente secção rítmica (Marta Sanchez no piano, Luke Stewart no contrabaixo e Russell Carter na bateria – exatamente a banda dos seus dois últimos álbuns), sendo de lamentar apenas o histrionismo tão inesperado quanto dispensável com que a esposa de Murray assaltou o palco (mas alguém poderia porventura ter contratado tamanho despropósito?) para grunhir nos dois temas com que ameaçou destruir o concerto, o que só não aconteceu porque toda a restante música do quarteto foi tão forte, intensa e ampla.
Aos 70 anos de idade, Murray mostrou que, muito mais do que uma mera revisão ou restauração do passado, a sua música continua a ser uma síntese capaz de continuamente transformar o jazz e sua tradição em algo de paradoxalmente novo e intemporal e, acima de tudo, sempre vital.

Artemis
Vitalidade foi o que seguramente não faltou ao concerto do supergrupo Artemis que fechou em alta mais uma grande edição do AngraJazz. A pianista Renee Rosnes, a contrabaixista Noriko Ueda, a baterista Allison Miller, a trompetista Ingrid Jensen e a saxofonista Nicole Glover, umas mais experientes, outras mais jovens, são cinco grandes senhoras (ou, muito simplesmente, músicos, independentemente do sexo) do jazz de hoje, todas elas instrumentistas de exceção, tanto do ponto de vista técnico quanto pela forma como souberam fazer bom uso do muito que sabem para produzir, tema após tema, uma longa série de brilhantes improvisações. O nível é de tal forma elevado que arriscaria dizer que, se houve vinte solos improvisados neste concerto, esses terão sido os vinte melhores solos do festival!
E é óbvio que músicos deste calibre, ainda mais constituindo um coletivo a tempo inteiro como presentemente constituem, desenvolveram também, entretanto, um som de grupo muito próximo da perfeição.
Algumas das composições originais podem não cativar o ouvido do público com grande facilidade, o que certamente não se verificou em temas como “Hackensack” (de Thelonious Monk) ou “Footprints” (de Wayne Shorter), mas, uma vez exposto o tema, e como que independentemente dele, o grupo garantia sempre uns bons minutos de divina improvisação, fazendo-nos sentir, música após música, e ao longo de cerca de hora e meia, muito próximos de um local que deve ser, se este efetivamente existe, o paraíso do jazz, como bem merece um festival que, edição após edição – e já lá vão 26 –, nos tem oferecido tanto e tão bom jazz. Bem-haja, por isso, o AngraJazz!

 

Paulo Barbosa

 

(Todas as fotos por Rui Caria)

(Paulo Barbosa esteve no AngraJazz a convite do festival)